sexta-feira, maio 20, 2005

Sem rede

As cidades estão cheias de loucos. Alguém já fez uma canção sobre os loucos de Lisboa, alguém já reparou, mas ainda não se ouviu ninguém que pudesse fazer alguma coisa falar nisso. Na capital, quem anda no Metro vê tudo o que muitas vezes passa despercebido à superfície. Quanto tempo levaremos até atingirmos a insanidade mental pública de outras cidades europeias? Em Dublin à saída de um banco gritaram-me impropérios sem nunca me terem visto, e logo a seguir reformularam a gritaria e de repente era um poema de amor em francês. Um amor furioso e alcoolizado. Eu fui só o vulto que estava na linha de visão do declamador .
Mas aqui eu vejo-os muito no Metro. E realmente há qualquer coisa de "subterrâneo" no ser louco, meio-louco, ou apenas sozinho . Era um homem jovem, 20 e tais, ar de estudante, de atleta esclarecido . O comboio parou e da janela vi-o a falar com alguém...que não estava ali. Mas não estaria a falar para um auricular de telemóvel, porque ali tão debaixo do chão não há rede. As portas abriram-se e ele entrou com um ar tão disperso como o de qualquer outro passageiro. Estava sozinho. De repente abriu a boca e disse a meia-voz "estúpidos!estúpidos! Não quero ir, não quero ." E lá foi dizendo de sua justiça, com intervalos de silêncio de poucos segundos . Não estava sujo, não tinha roupas estranhas, não tinha um ar alucinado, não tinha os cabelos em desalinho, nada no aspecto físico denunciaria uma inadaptação social. Uma pessoa como outra qualquer, com um aspecto absolutamente integrado e saudável . Como eu, como tu. Sozinho .

segunda-feira, maio 16, 2005

Das influências

O tráfico de "coisas" está na moda e espalha-se por todas as áreas possíveis e imagináveis, tudo o que se pode ter pode ser comprado, e o que não pode ser comprado legalmente, é comprado de outra maneira qualquer . Da droga às criancinhas, não há nada apetecido que não se encontre em sub-mercados. No entanto, o mais fantástico de todos os tráficos é o tráfico de influências. Acho que é realmente original, e é preciso ter um certo perfil para entrar nesse meio. Estou a imaginar alguém de gabardine a aproximar-se e a segredar "Pssst! Já as tenho, vêm de Cuba, fresquinhas como nunca se viu" . E de repente abre a aba do sobretudo e traz lá dentro umas 5 filas de reluzentes influências penduradas . E nunca valem todo o dinheiro que se possa dar por elas, é sempre o dinheirito e mais qualquer coisinha: umas prostitutas, um terreno, uma autorização de construção, enfim algumas satisfações pontuais . . .

segunda-feira, maio 09, 2005

Vergílio

'Sou da raça dos inúteis. Dos que inventam a vida por sobre a vida, dos que constroem o real para além de todo o real e esse real é que é, dos que sabem o que perdura para além do que é mudável e passa, dos que traem a verdade, porque há outra verdade ainda e mais nenhuma depois dela, dos que fecham os olhos para ver, dos que conhecem a memória'.
by Tangerina

sexta-feira, maio 06, 2005

Lufada de ar fresco

E depois deste neuro-escaldão alfacinha, para uma nortada atrevida, é favor visitar

www.ogatopretodabruxacarrapito.blogspot.com

Ele há gente sem papas na língua!!!!

Lisboa ao sol

Sim, preocupo-me com a seca e os problemas da agricultura, apesar de fazer tudo na cidade. Penso mesmo muito na chuva, se ela virá abençoar o meu aniversário, como em todos os anos de calor intenso . E no entanto gosto de sentir a luz de Lisboa na minha cara, essa luz soalheira que acorda a pele e o coração . Gosto do cheiro da cidade, cheiro a castanhas no frio limpo e estaladiço de inverno, e cheiro a verão e a santos populares em noites quentes .
Um professor (daqueles que amávamos, dos que ficarão sempre na memória) chamou-nos uma vez insensíveis, que tínhamos corações empedernidos . Há quem se lembre disto como se fosse ontem. Pois eu lembrei-me disso quando pisava a calçada do Chiado, esse outro coração onde toda a gente de repente é Lisboeta . Ao sol . E pensei em como gostaria, quando morresse, que alguém me tomasse o coração e o devolvesse ao pedacinho de terra a que ele mais pertence - escondendo-o aí mesmo, debaixo dessas pedras, onde ele pudesse secretamente descansar ao ritmo dos corpos que passam. O meu coração empedernido .

quarta-feira, maio 04, 2005

E porque ainda há esperança para alguns ... :)

(Lisboa, 24 Fevereiro)


Na fotografia, reparo no ângulo que tu não olhaste no momento do disparo, o meu joelho de collant, descoberto da saia de flores. Como entendo a solidão, a de nós todos, e como entendo o que há de belo em mim e tu descobres em cada dia. Que queres de mim? Devia haver um sentido para além de agora, devia haver, era suposto, uma promessa, um plano, um fim. Há o que sonhas connosco, sei, mas como o sonhas? Sonhares uma vida boa para nós é desarmar a minha dúvida, deixar pouco espaço para a razão dela existir em mim. No entanto ela espera-me em cada esquina de sorriso teu, quando me vês chorar - é tão simples, M. , em cada momento que me apetece sonhar o eterno, que me apetece firmar numa convenção de posse qualquer, dizer ao mundo. Acredito, mas como o sonhas? Nem interessa. Mas o que haveria de felicidade tua? Para onde ia a tua vida toda até então, o que és hoje, o que foste antes, o que és?
Talvez tudo se gaste entretanto. Talvez, resolvemo-nos na ternura de fazermos amor, no tempo contado. No silêncio de palavras que não existem, em olhar um pato de banheira, nas horas do teu apartamento. Em sermos só uma constelação equívoca de encontros, em nascermos novos amantes em todos os encontros, e isso ser na verdade maravilhoso, porque somos nós, no necessário que é de irmos sendo alguma coisa.


By Tangerina

domingo, maio 01, 2005

Da esperança

O problema das palavras e de as gastar sem lhes chegar ao âmago do sentido, é que de tanto as repetir, elas perdem o pouco sentido que têm . Assim , uma qualquer palavra conhecida, se a dissermos muitas vezes a meia-voz, acaba por se desagregar rapidamente na boca e tornar-se estranha ao ouvido. Mas esse é o ponto em que ela está pela primeira vez livre para ser de novo pensada. A partir daí será sempre uma palavra nova (outra vez) .
Ainda ontem discutia com uma amiga a questão da "esperança" . Vem do verbo "esperar", e alguém fez a palavra à medida do que ela diz :
esper a n ç a ,
soa a um esperar que se arrasta no tempo, que não acaba nunca . . . A esperança não é uma capacidade, é um instinto obscuro e irracional (sim, irracional, desenganem-se) que não se controla . É por isso que, dizem, é a última a morrer. Mas eu diria antes: é aquela que teima em não morrer, mesmo que às vezes fosse melhor que morresse, para se continuar com o resto que a vida nos dá e que não aceitamos porque ainda temos esperança . Isto é, porque temos nada , mas esse nada é precisamente o espaço incomensurável que está guardado para uma coisa só e não pode ser preenchido por outra qualquer.