domingo, abril 22, 2007

Da dignidade, num plácido Domingo


Num país onde se acorre em euforia a qualquer encenação da treta desde que se pague bem e haja uma bela máquina publicitária, no desejo do prestígio fácil de "eu fui", mesmo que não se goste, naturalmente que com igual rapidez os públicos se indignam e amesquinham perante um espectáculo cancelado.


Especialmente porque de repente andamos cheios e cansados de pessoas e figuras públicas canceladas, de flagrantes, de enganos e desenganos do "quem é quem" nacional. Chocamo-nos, ou melhor, entretemo-nos a desfiar as fraudes públicas como quem vê um filme série B, daqueles que se come e esquece logo a seguir, e vingamo-nos com protestos numa catarse sem fim sobre a cena pública, ao mesmo tempo que desenvolvemos uma preguiçosa complacência perante os fiascos pessoais que nos rodeiam a vida privada, ao ponto de os considerarmos aceitáveis e banais . A fúria com que nos deveríamos opor em primeiro lugar à fraude pessoal e presencial, quer nossa quer daqueles em quem insistimos colar o selo da inclusao num historial privado é demasiadas vezes explorada fora desse universo singular, transferida para a indignação pública. Não que esta não tenha de ter lugar, mas regra geral, vejo-o no espalhafato da abordagem pública, assume o seu lugar e ainda arca com os detritos não-recicláveis da vida de cada português .


Por isso, acho que entre Sócrates e Plácido Domingo, entre vários conhecidos meus e Plácido Domingo, há uma grande diferença . A dignidade não se perde num momento de fraqueza, e muito menos num momento de franqueza . Mas também não se recupera em asserções surdas e absolutas, em juras solenes de integridade . Muito menos no acolhimento canino de bajulações partidárias, como se se fosse mais vítima do que culpado. A dignidade, onde possa ameaçar ruir, recupera-se num pedido de desculpas, no reconhecimento de que as coisas não correm como esperado, na diferenciação entre o que está obviamente mal, e o que é bem . Está em não mentir a si mesmo nem aos outros quanto ao que está à vista de todos e procurar ainda assim reparar o problema em vez de fazer de conta que ele não existe. A maior parte dos que deixam ruir a sua dignidade pessoal não vos pedirão desculpa, antes vos acusarão por terem reprovado as suas acções . E continuarão achando que não há nada de errado naquilo que são .


O público indigna-se com o espectáculo cancelado, com a fraude em que se banhou alegremente antes de conhecer a verdade, e tanto mais violentamente quanto menos suporta continuar a indignar-se com os fiascos da sua esfera pessoal . Bem haja o cantor por ter dado a cara pelo concerto que não se fez . Livrou-se do fiasco pessoal e público antes de ele acontecer . Homem sábio .