sexta-feira, junho 10, 2005

Da música

Para "Gabs" e outros músicos.
Este texto está arquivado no Dept. Filosofia da Fac. Letras desde 2002
Das várias definições que filósofos, músicos, estudiosos ou curiosos deram da musica, o único aspecto de base em que provavelmente todas estarão de acordo é o facto de que na música, com mais acuidade e maior subtileza do que em qualquer outra forma de expressão da natureza (humana ou não), se jogam os diálogos constantes e complexos dos sons e dos silêncios. Então “música” é algo que se constitui a partir de som e de silêncio. Mas estaremos, como à primeira vista parece, perante uma oposição? Será que, antes de toda a especificação do fenómeno musical, podemos dizer que {Música = som vs silêncio}?
Assim como as cores e as linhas ora preenchem espaços, ora delimitam fronteiras, também cada som marca o seu território entre os restantes, no espaço melódico e mesmo harmónico. Mas já Kandinsky falava não só em cor, mas também em ausência ou excesso de cor, traduzidas respectivamente no preto e no branco. Preto e branco, que traduzem também a sombra e a luz. No jogo entre luz e sombra, destacam-se as fronteiras das formas e das cores dos objectos. Ora de forma alguma poderíamos dizer que , na relação de confronto entre luz e sombra, a sombra seja a luz da luz. Mas podemos de alguma forma afirmar que, ao ofuscar a sombra, luz é sombra da própria sombra. De algum modo, neste sentido muito especial e não comutativo, luz é sombra. E o som?
Seguindo esta linha de comparação entre luz/sombra e som/silêncio, diremos então que entre som e silêncio se destacam e delimitam as formas e os timbres musicais. E do mesmo modo, se o silêncio não pode ser o som do som, já o contrário é bastante defensável. Som é silêncio, porque significa o silêncio do silêncio. Assim, mais do que a arte dos sons, a música é por excelência a arte dos silêncios . Sob muitas e variadas perspectivas, explorar o/um som, interrogar um som, extrair um som, procurar um som, tirar partido de um som, é também, e talvez seja sobretudo, explorar um/o silêncio, interrogar um silêncio, extrair um silêncio, procurar um silêncio e tirar partido de um silêncio. O gesto interpretativo (e bem assim a gesta interpretativa) não é portanto, na sua essência, o de produzir “aquele” som, mas é, ainda antes de falarmos nesses termos, e como teia genesíaca, integradora e articulante da totalidade de “sons” produzidos, o gesto de dominar o silêncio, organizá-lo, apropriar-se dele por detrás das suas máscaras incontáveis e jogá-lo, ou mais musicalmente, et le jouer...

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

(Muito me honra essa dedicatória! =) )

E...palavras para quê? Está tudo dito. =) (Já dizia uma música nossa conhecida: «parte sempre do silêncio...tudo o que vais dizer, começa aí..tens de reflectir bem para que valha a pena o que lhe queres acrescentar...»)
Ainda há dias estive com um Prof que muito estimamos...e falámos sobre música...sobre o encanto dessa arte...é que, ao contrário dos livros, pinturas, esculturas, etc, que estão ali, nas prateleiras, ou paredes,feitos, acabados, a música é a única arte que tem vida própria, que se recria em cada interpretação! Que tem a capacidade de nos falar directamente às emoções, sem necessitar de conceitos, e a emoção que sentimos numa passagem, pode ser superada na passagem seguinte..ou no silêncio seguinte...É fascinante!

junho 11, 2005 8:40 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

(Graaaande texto, miúda! Parabéns =) )

junho 11, 2005 8:41 da manhã  
Blogger Ginja said...

... Deixei aquela nota empertigada mais por horror aos plágios do que propriamente para dizer que escrevo mesmo bem :P, mas sim,o texto é tirado de um trabalho meu e lembrei-me dele por causa do teu blog ;) Achei que ias gostar...

junho 11, 2005 11:56 da manhã  
Blogger tarsofagundes said...

Dê-me a liberdade de ser um chato realista por alguns instantes. O som é, para mim, nada mais que aquela faixa de zero a quarenta mil Hertz (algo nesta amplitude) em que o cérebro humano consegue interpretar. Acredito na arte (sem dúvida nenhuma) pois gosto de ouvir música, ler alguns tipos de livros entre outras formas de expressão artísticas. Porém, questionar conceitos sobre arte (pois, enfim, é disso que se trata o post) é muito mais que tentar defini-la. A arte (que é forma mais conteúdo) revela um estado de espírito e visão de mundo do artista. Portanto, a sua interpretação da arte chega até que ponto? A Arte deve possuir algum significado até que ponto? A arte deve passar alguma sugestão ou ensinamento até que ponto? Pois, creio que, essas, seriam boas discussões (perceba que não estou pondo em dúvida a credulidade de seu post) pois sabe que seu espaço é muito lido e comentado. Aproveite portanto. Vamos pôr estes escritores a escrever.

junho 11, 2005 8:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Como curiosidade, o Kandinski sofria de sinestesia - uma "doença" que faz com que o cérebro "baralhe" as sensações, por assim dizer, fazendo com que a pessoa, por exemplo, ao saborear uma alimento, tenha uma sensação visual. No caso do Kandinski, ao contemplar uma imagem, tinha sensações acústicas!

junho 27, 2005 12:22 da tarde  
Blogger Ginja said...

Olá "anonymous" (??)... Obrigada pelo comentário . Será que podemos chamar a isso uma "doença" ? Não será antes uma "capacidade" ? .... Nunca tinha pensado na sinestesia de um ponto de vista patológico (não tenho uma resposta para estas duas perguntas, mas fico-me aqui a pensar nisso) ...

junho 28, 2005 11:31 da manhã  

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